O eucalipto

Nota: os parágrafos em itálico foram escritos para a página web do Projecto Cabeço Santo (https://ecosanto.com/o-cabeco-santo-em-perspectiva/a-ocupacao-humana/o-eucalipto/), e, como não faria sentido reescrevê-los para este sítio, decidi copiá-los.

Os eucaliptos chegaram a esta paisagem na década de 50, e encontraram todas as condições para se “imporem”: grandes extensões de montanha com escasso aproveitamento e já sem árvores, mas com solo suficientemente apto para o cultivo da espécie; a criação na região de uma primeira empresa de celulose capaz de absorver a produção (a Celulose do Caima, hoje em ruínas); o potencial de rendimento que representava a cultura para comunidades de subsistência no limiar de uma transformação de grandes consequências.

Nascida na década de 50, a mais antiga associação de Belazaima, o Centro de Recreio Popular, representa na sua insígnia os montes vizinhos à aldeia (eles de facto não têm aquele perfil, mas não nos importemos com a liberdade artística). Parece que o monte mais elevado representa o Cabeço do Meio, o mais próximo da aldeia. Dizia-se que no seu pico havia três laranjeiras, bem visíveis de Belazaima, que se destacavam do matagal que cobria o monte.
A insígnia da nova União de Freguesias já dá um lugar central e destacado ao eucalipto. Sinal dos tempos…

Os primeiros eucaliptos foram plantados à cova, sem mobilização do solo com maquinaria (que ainda não existia) e utilizando o próprio matagal como fertilizante. Eram procedimentos rudimentares, mas mesmo assim o progresso foi rápido: no intervalo de duas décadas quase toda a paisagem tinha sido transformada num imenso eucaliptal. Não obstante o trabalho de colheita ser laborioso, pesado e lento, os rendimentos obtidos eram elevados para comunidades onde o dinheiro era escasso, e o antes desprezado solo de montanha em pouco tempo se tornou mais valorizado que o próprio solo agrícola.

No espaço de uma geração a paisagem de montanha transformou-se num imenso e monótono eucaliptal

No espaço de uma geração a economia de subsistência sucumbiu, os animais de carga desapareceram da paisagem rural, e o trabalho na terra passou a ser apenas um complemento de um modo de vida mais urbano, com a principal fonte de rendimento a ser o trabalho remunerado nas fábricas e serviços. A relativa proximidade aos centros urbanos e industriais do litoral (começando pelos do próprio Concelho, Águeda), ajudou a limitar o impacto da emigração e da migração para as cidades. Nesse processo muitas terras antes cultivadas foram também plantadas com eucaliptos, fazendo-as parecer muito menos do que realmente eram.

Um aspecto determinante no impacto que os eucaliptos viriam a ter na paisagem foi a ausência de regulação, o que hoje chamaríamos “ordenamento”. O Estado esteve praticamente ausente de um processo de alteração maior da paisagem, e o único condicionamento imposto foi aquele quer era óbvio e necessário: a distância de guarda às terras cultivadas. Mas como estas foram diminuindo de extensão, este “condicionamento” quase não teve relevância na ocupação do espaço. Deste modo, desde os vales até aos cumes das montanhas, todo o espaço foi absorvido pelo eucalipto. O surgimento das máquinas de arrasto facilitou a ocupação de cada recanto, mesmo daqueles de onde seria difícil tirar uma árvore. No entanto as primeiras plantações com mobilização geral do solo faziam-se apenas com ripagens (alfaias de dentes, que cortam o solo sem alterar profundamente a sua estrutura).

Embora tenham sido mínimas as áreas que escaparam ao processo de “eucaliptação”, elas tiveram uma importância de dimensão superior à área que ocupam, porque foi nelas que se “acantonaram” manchas de vegetação espontânea, uma espécie de “micro-reservas” que nos permitem ter uma ideia, ainda que limitada, acerca da composição dos ecossistemas espontâneos da região. Estas áreas foram essencialmente as seguintes:

a) as testadas das terras agrícolas, áreas por vezes de declive elevado, que separavam os eucaliptais das terras cultivadas;

b) as áreas de solo marginal, quase exclusivamente no Cabeço Santo, que não tinham condições para serem aproveitadas;

c) as galerias ripícolas, embora estas tenham sido progressivamente danificadas pelas inavsões biológicas, particularmente com mimosas (Acacia dealbata).

Testadas da Benfeita
Área de solo marginal (habitat rupícola), Cabeço Santo
Galeria ripícola de salgueiros, Cambedo, Belazaima-a-Velha

As próprias testadas das terras agrícolas, que durante as primeiras décadas conservaram interessantes manchas de vegetação autóctone, sofreram bastante com a sucessiva ocorrência de incêndios florestais, pois não obstante a sua capacidade de auto-regeneração, os eucaliptos próximos criaram bancos de sementes nestas áreas que, sendo “activadas” pela ocorrência do fogo, germinaram e, sem que ninguém precisasse de intervir, passaram a dominá-las. Assim aconteceu em Belazaima com as testadas do Pedaço e da Lavandeira. Foi na Benfeita onde essas testadas chegaram até aos dias de hoje em melhor estado.

Das três áreas referidas, as áreas de solo marginal foram as que chegaram aos nossos dias em melhor estado de conservação, e com maior biodiversidade, embora também estas ameaçadas pelo avanço de uma espécie invasora: a acácia-de-espigas (Acacia longifolia).

Quanto às galerias ripícolas, nas quais podemos incluir também os cursos dos vales mais importantes, elas tornaram-se na mais gritante expressão dos maus tratos a que a paisagem foi sujeita: frequentemente, os eucaliptos foram plantados até às próprias margens, com eliminação activa da vegetação existente,  mas o pior haveria de vir sem ser necessária muita intervenção humana: os sucessivos incêndios promoveram uma agressiva expansão de espécies exóticas de carácter invasor, sobretudo as mimosas (Acacia dealbata), que acabaram por dar o golpe de misericórdia nos já debilitados e acossados habitats ribeirinhos, ocupando-os com grande densidade e com quase total exclusão das espécies nativas.

Entretanto, nas décadas mais recentes, foram-se alterando as próprias técnicas de instalação (agora quase sempre re-instalação) e condução de eucaliptal, caracterizando-se por:

  • Nos solos em declive se criarem invariavelmente socalcos ao longo das linhas de nível, operação realizada com buldozer e potencialmente de grande impacto na estrutura do solo, na vegetação existente e na paisagem. É de facto uma operação largamente irreversível à escala de muitas gerações. Os socalcos são uma forma de permitir a gestão mecanizada das plantações, e são por vezes apontados como contribuindo para minimizar a erosão do solo e maximizar a infiltração da água da chuva embora, pelo menos a primeira, possa ser comprometida por outras técnicas de gestão. Na prática o impacto – paisagístico e ecológico – pode variar bastante de acordo com o declive dos solos e as suas características: desde quase tolerável a desastroso.
  • A fertilização na plantação (e na exploração) com adubos de síntese, ainda que frequentemente com formulações de “libertação lenta”. Nas zonas – como Belazaima – onde existem aviários de produção intensiva, verifica-se também a deposição, sobretudo em cobertura, de grandes quantidades de estrume sem compostagem, que provavelmente está associado a uma maior acidificação dos solos – já de si ácidos – e possivelmente a lixiviação de nitratos, sem provavelmente contribuir muito para a melhoria dos solos onde são aplicados
  • A utilização, ainda não generalizada, de plantas de eucalipto de origem clonal, mais uniformes e produtivas, mas mais exigentes em fertilização e mais susceptíveis a pragas.
  • O recurso à grade de discos na fase de exploração do eucaliptal, uma técnica só possível com as plantações instaladas em socalcos e que tende a deixar o solo desprovido de vegetação por longos períodos de tempo, favorecendo a erosão e a decomposição da matéria orgânica.
  • Embora ainda não generalizado, tende a aumentar o uso de herbicida sobre o matagal nas plantações. Nas mais “modernas”, já em socalcos, sobretudo nas linhas de plantação, já que nas entrelinhas opera a grade de discos. Nas mais antigas o herbicida pode ser aplicado por toda a área, uma operação menos custosa financeiramente do que a preferível operação de corte com moto-roçadora.
  • Mais recentemente, a ocorrência de pragas como o gorgulho do eucalipto está a ser contrariada com a pulverização de insecticidas.

Estas operações e técnicas de intervenção tendem a extremar ainda mais o carácter monocultural das plantações, tornando o eucaliptal uma formação ecologicamente pobre, paisagisticamente monótona e desinteressante, e de sustentabilidade duvidosa.

As imagens que apresento a seguir são uma “galeria de horrores”, que não aconselho aos espíritos mais sensíveis. Aliás, que elas não firam a sensibilidade da grande maioria dos nossos concidadãos é um mistério para o qual só tenho algumas parcas explicações.

Repare-se como o débil solo ficou completamente obliterado por esta mobilização
A linha de eucaliptos mais à esquerda está sobre a margem do Ribeiro de Belazaima, praticamente escondido sobre detritos e aterro
Esta plantação nova, no Concelho de Águeda “engoliu” completamente um vale, afluente do Rio Águeda
A alteração da estrutura do solo é bem visível nesta imagem, onde se observa uma débil linha de plantas do matagal a que correspondia a superfície original do solo
Mobilização de solo para plantação, no Concelho de Águeda. As árvores que ficaram são essencialmente invasoras (género Acacia)
Isto não é uma guerra contra a natureza e a paisagem, é a exploração legítima, legal, e socialmente aceite de um solo florestal, para fins produtivos
É este o triste destino desta paisagem
A aplicação de herbicida sobre o já escasso e simplificado sub-bosque do eucaliptal resulta no exacerbamento do carácter mono-específico das plantações, força a anulação de qualquer teia de relações ecológicas, é visual e paisagisticamente desastrosa e adiciona-se às outras violências sobre a paisagem como foram uma mobilização agressiva do solo e a imposição de uma espécie exótica
Apenas duas cores: o castanho e o verde-glauco. O castanho inclui o solo, cada vez mais exposto e desprotegido
Apesar do escasso tamanho e densidade deste matagal, foi pulverizado com herbicida
Neste eucaliptal nas margens do Rio Águeda, o sub-bosque do eucaliptal foi pulverizado com herbicida e as margens do rio (à esquerda) estão infestadas com mimosas
O eucaliptal “ideal” é uma formação perfeitamente uniforme de árvores geneticamente iguais (clones) que crescem rapidamente num solo isento de plantas concorrentes, e que se estende pela maior área possível
Um eucaliptal assim poderia ser interessante e biodiverso, mas facilmente será acusado (ou ao seu proprietário) de não ter “gestão”.

Enorme discussão e polémica causa o tema dos incêndios florestais, sobretudo quando estão associados a perdas humanas e grandes extensões ardidas. A responsabilidade (ou não) dos eucaliptos nessas situações é invariavelmente tema de acaloradas discussões e alvo de atribuição de “culpas”. Longe de mim pretender tirar conclusões “finais” relativamente a tão vasto e polémico assunto, mas alguns factos me parecem evidentes.

Os grandes incêndios estão associados a múltiplas causas, a mais elementar das quais o tempo atmosférico. Quando, mais frequentemente no Verão, mas às vezes ainda na Primavera, outras já no Outono, o anticiclone dos Açores sai do seu sítio habitual e se centra nas Ilhas Britânicas ou por essa zona; se, adicionalmente, uma  depressão no norte de África “unir influências” com o anticiclone, gerando uma corrente de leste que pode dar origem a um vento moderado a forte, que, movendo ar continental, é seco, e que sofre um aquecimento por compressão ao atingir as altitudes mais baixas do litoral oeste peninsular, vento, ainda, que se tende a levantar sobretudo de noite, cria-se um “caldo” de condições atmosféricas que faz logo soar todas as campainhas de alarme.

É inegável que o matagal, formação densa e lenhosa que tende a ocupar a generalidade dos solos pobres das montanhas, é um alvo fácil das chamas. E que, nas referidas condições atmosféricas, as propaga rápida e intensamente. Mas se, para além do matagal, existirem eucaliptos, é também claro que, com vento e baixa humidade, as chamas se propagam facilmente às copas, cuja folhagem arde com muita intensidade, fruto dos óleos essenciais presentes nas folhas dos eucaliptos. Ora, como os eucaliptos são muito mais altos do que as plantas do matagal, isso resulta em incêndios de grande perigosidade e impacto visual. Além disso, as folhas incandescentes dos eucaliptos são transportadas pelo vento e pelas correntes convectivas geradas pelo próprio fogo, facilmente vindo a atear outros focos de incêndio a centenas de metros de distância.

E com “outras” árvores, o que acontece? Com os pinheiros, a situação não é muito diferente, pois sendo o pinheiro uma resinosa, a sua susceptibilidade ao fogo também é elevada. As formações “maduras” de carvalhos de folha caduca, ao contrário, são pouco susceptíveis, porque o matagal lenhoso, sendo constituído por plantas apreciadoras de luz, está ausente dessas formações. O problema é que as formações “maduras” de carvalhos são quase inexistentes. Nas formações jovens, degradadas ou pouco densas, é provável que exista matagal suficiente para alimentar o fogo e este, uma vez sob a copa de um carvalho, sobretudo se for jovem, facilmente origina a perda a parte aérea da árvore, ainda que a copa não arda com a intensidade da copa de um eucalipto. Já o sobreiro, mercê da sua capa de protecção, a cortiça (se a tiver!), sobrevive muito melhor a um incêndio, e, ainda que possa perder folhagem e ramos mais finos da copa, pode recuperar a parte aérea em poucos anos.

O facto de o matagal ser um agente “primário” da propagação do fogo, torna-o facilmente alvo de todas as “culpas”, o bode expiatório, digamos assim, uma situação agravada pelo facto de parecer não ter nenhuma utilidade. Para além dessa “culpa”, o matagal é ainda apontado como sendo uma formação de plantas concorrentes com as árvores cultivadas, recebendo por isso mais uma acusação. Daí até ser considerada quase “maldita” e merecedora de eliminação por todos os meios, vai apenas um passo. A expressão “limpeza das florestas”, como se estas estivessem “sujas”, é uma forma de traduzir a eliminação do matagal, justificada por todas as inconveniências que lhe são atribuídas. É assim que a tão elogiada “gestão” dos eucaliptais passa em primeiro lugar pela eliminação do matagal nas entrelinhas ou socalcos das plantações, com recurso a grade de discos. Na geração anterior de eucaliptais o matagal era cortado, frequentemente com moto-roçadora, ou, em caso de terrenos planos, com destroçadora de correntes acoplada ao tractor. Mas o trabalho de roçadora é caro e, ao fim de algum tempo, o matagal cresce outra vez… Por isso a “evolução” das práticas está a levar a uma operação dramaticamente eficaz: a aplicação de herbicida sobre o matagal. Muitas vezes extensivamente, outras, em complemento ao trabalho da grade de discos na entrelinha do eucaliptal, eliminando o matagal na linha. Assim se atinge o “ideal” de um eucaliptal “limpo” e logo pouco susceptível ao fogo. E é assim que se justifica a relativamente reduzida susceptibilidade das plantações geridas ao fogo.

Como o fogo tem muitas vozes e o matagal é mudo, ninguém parece atribuir-lhe valor, mas, como na natureza nada é linear e simples, a verdade é que o matagal é, de facto, uma formação valiosa: ela é constituída por plantas pioneiras, que se fixam em solos pobres e degradados, melhorando-os e tornando-os menos susceptíveis à erosão; é constituída por plantas de abundante floração, atraindo insectos e por consequência outros níveis tróficos da fauna; tem grande capacidade de regeneração em caso de corte ou combustão; cria micro-habitats onde se poderão desenvolver arbustos ou mesmo árvores.

A eliminação a todo o custo do matagal nos eucaliptais deixa o solo desprotegido, torna as plantações ainda mais monótonas e mono-específicas, os apropriadamente designados “desertos verdes”, e deixa as próprias plantações mais susceptíveis a pragas devido à redução da biodiversidade. Então qual é a solução? Perguntarão algumas pessoas, já agastadas pelo carácter multifacetado e inconclusivo da discussão. A verdade é que não há respostas simples: não há eucaliptais geridos sem impactos, não há eucaliptais não geridos sem impactos, não há soluções “alternativas” de larga escala imunes ao fogo… A única conclusão certa é que não há respostas conclusivas… Só há a modéstia de reconhecer que não temos soluções fáceis para tudo, e uma atitude de humilde aproximação à paisagem, procurando perceber, tanto com a cabeça como com o coração, qual a melhor maneira de cooperar com ela para que, à vez, ela assista às nossas (humanas) necessidades ao mesmo tempo que possa expressar as suas mais vibrantes potencialidades.