O restauro ecológico

Perante uma paisagem avassaladoramente artificializada pelo cultivo extensivo de uma única espécie exótica, o eucalipto, a agressiva implantação de espécies invasoras, a erosão da biodiversidade a níveis extremos em regiões inteiras, o que fazer? Tal é a dimensão da devastação que qualquer coisa que se possa fazer em sentido contrário deixará sempre a impressão de uma gota de água num mar de problemas, de um pequeno oásis na imensidão de um deserto. Mas, como alguém terá dito, infeliz é aquele que nada fez porque era muito pouco o que podia fazer…

Fazer algo, o possível, perante tão grande desafio, e numa sociedade em que a maior parte dos seus membros nem sequer reconhece uma tal necessidade, o que ainda aumenta a dimensão do desafio, foi o apelo que sobre mim caiu com um peso desmedido, e ao qual tentei dar resposta, tanto quanto o corpo e a alma, e os recursos disponíveis me permitiram. Tem sido o melhor que podia ter sido feito, o mais sensato, o mais esclarecido? Provavelmente não: errar é humano e as respostas para todos os problemas que se colocam a cada passo não estão escritas em nenhum livro. Mas, pelo menos, tem sido uma tentativa apaixonada, persistente, ambiciosa, de dar resposta, à escala possível, às necessidades da paisagem.

O que é o Restauro Ecológico?

Pergunta de difícil resposta, porque se queremos restaurar algo, devemos saber o quê, mas o quê é exactamente o que não conhecemos com rigor. Poderíamos pensar que queremos restaurar o bosque autóctone primitivo, mas não sabemos exactamente como ele era em cada situação de exposição, altitude, solo, disponibilidade de água… E o solo, como vimos, erodiu-se e degradou-se ao longo dos séculos.  As monoculturas provavelmente empobreceram-no e de certeza produziram alterações profundas na sua estrutura. Também não seria possível criar em curto prazo as condições climáceas e a pequena escala exclui os organismos mais elevados da cadeia trófica. E ainda há as alterações climáticas. São demasiadas condicionantes… Talvez o que haja a fazer não seja qualquer tentativa de restauro dos bosques primitivos mas uma recriação, baseada em muitas das espécies que deles faziam parte, apenas uma recriação, assente na observação, na intuição e na experimentação. Nesse processo de recriação, as próprias necessidades humanas podem ser atendidas, claro, o grau a que isso aconteça fazendo aproximar o objectivo mais ou menos do conceito de ecossistema cultural.

Os ecossistemas culturais existem quando as culturas promovidas pela acção humana interagem com os elementos espontâneos, conseguindo ainda criar uma teia de relações ecologicamente saudável. Muitas culturas tradicionais conseguiram, em maior ou menor medida, criar ecossistemas culturais. Nestes ecossistemas, algumas espécies originalmente presentes terão sido extintas, mas a maior parte sobreviveu, adaptando-se às novas condições.

As culturas agrícolas e florestais modernas, baseadas num domínio supostamente garantido das forças da natureza, foram as que, pela primeira vez, de forma ostensiva, desafiaram o princípio de que qualquer organismo tem que coexistir com outros numa teia de relações, e que uma tal teia é fundamental para a sua saúde e sobrevivência. Ao fazê-lo, passaram a depender de artificialismos como a aplicação de pesticidas, e conduziram a sistemas agrícolas desligados da paisagem, mais parecidos com fábricas do que com ecossistemas. Com isso perderam a beleza, a alma e a capacidade para interagir com os próprios humanos num processo de evolução mútuo.

O que tem sido feito, e como?

O restauro de uma parcela inicia-se, normalmente, com a remoção das plantas indesejáveis, as exóticas e as invasoras, embora haja que ter em conta que, quanto maior é a perturbação de um sistema vivo, mais intensa é também a sua “reacção”, quer no sentido da regeneração das próprias plantas indesejáveis, quer no sentido da sua recolonização com outras plantas. Essas “outras plantas” podem já lá estar ou surgir de novo, mas tenderão a criar um processo de sucessão que, iniciando-se nas plantas pioneiras, continuará durante períodos mais ou menos alongados até qye as condições climáceas sejam atingidas.

A gestão, tanto das exóticas iniciais que tendem a recuperar-se, como das autóctones espontâneas que tomam o seu lugar é um dos desafios a que o processo de restauro deve dar resposta e que pode ser exigente em termos de aplicação de esforço.

A remoção mecânica de exóticas e espontâneas através de uma mobilização geral do solo, com a sua preparação para a plantação de novas árvores é uma opção clássica, mas custosa, nem sempre aplicável, e também com inconvenientes, mesmo que tal mobilização se limite a uma ripagem do solo, sem alteração significativa da sua estrutura. As suas vantagens são a facilidade com que novas árvores podem ser plantadas, a descompactação do solo que facilita a penetração das suas raízes e a inexistência inicial de plantas com elas concorrentes. Os seus inconvenientes são a possível reocupação com invasoras, a susceptibilidade do solo à erosão hídrica, tanto maior quanto maior for o declive, a destruição de eventuais plantas desejáveis que pudessem existir e a agressiva colonização com pioneiras, no médio prazo. Na plantação de árvores de crescimento rápido, como o eucalipto, a expectativa é a de que as árvores cresçam o suficiente antes que as plantas concorrentes se implantem com força. Mas, no caso de árvores de crescimento lento, isso tenderá a não acontecer, obrigando a uma gestão trabalhosa dessa vegetação concorrente. Exemplos de áreas onde se realizaram plantações com mobilização geral do solo são a Costa da Malhada (4 ha) e uma área de c. de 3 ha no Vale de Barrocas, ambas em 2021, embora a plantação na Costa da Malhada se tenha estendido para 2022.

Na prática, quer devido ao declive, quer devido à presença de plantas com interesse, a maior parte do trabalho de restauro realiza-se sem mobilização do solo por maquinaria pesada. A remoção de exóticas e invasoras pode ser simultânea à plantação, sementeira ou recuperação de plantas já existentes, embora isso levante sempre problemas de gestão, pois o seu crescimento é sempre  mais rápido que do que o das autóctones. Por outro lado, uma tentativa de remoção definitiva inicial, ainda que sempre parcial, pode não ser possível sem a aplicação de herbicida, ou, mais uma vez, sem a presença constante de um esforço de contenção. Acresce o facto de, em condições de ausência de mobilização do solo por meio de maquinaria, a plantação de árvores ser mais difícil e exigente, e de estas terem um crescimento mais lento. Por isso, mesmo quando já não há exóticas, a gestão da própria vegetação espontânea autóctone pode ser um desafio. Nos solos férteis e húmidos dos vales o silvado e os fetos rapidamente tomam conta de uma parcela e podem mesmo comprometer a sobrevivência de árvores e arbustos autóctones plantados, e nas encostas as plantas do matagal tendem a ocupar todo o espaço disponível, facilmente se sobrepondo a árvores que, nestas condições, crescem ainda mais lentamente…

Claro que as plantas espontâneas, sobretudo o matagal, têm uma função ecológica importante: elas são as pioneiras que contribuem para a melhoria das condições do solo, o que por sua vez tornará mais viável a sobrevivência de árvores e arbustos. Nós, humanos, é que temos pressa: queremos acelerar o processo e ter árvores em vez de matagal o mais cedo possível. Isso é compreensível, por várias razões, mas também há que ter paciência porque há processos que são lentos, pela sua própria natureza. Na prática, as árvores plantadas recebem uma fertilização orgânica e mineral, para melhorar as suas condições de partida, e depois o matagal (os tojos são particularmente interessantes neste contexto) pode ir sendo cortado na vizinhança da árvore e utilizado como cobertura. Claro que isto é exigente em mão de obra e o uso da moto-roçadora revela-se essencial. Ainda mais essencial é nas terras férteis, no controlo do silvado e dos fetos. Estes, ao contrário das primeiras, secam no Inverno, mas, durante as estações de crescimento, podem crescer dois ou três metros e tombar para cima de uma árvore pequena. O silvado, em condições favoráveis, cria brenhas impenetráveis em poucos meses…

Desta pequena descrição se conclui que fazer restauro ecológico é um trabalho exigente em mão-de-obra, demorado, e mesmo assim de resultados incertos… Com o tempo irei acrescentando a estas páginas descrições e imagens do que foi feito e quando em cada parcela. É interessante como diferentes parcelas apelam a abordagens diferentes. É quase com se cada sítio novo fosse um desafio novo, mesmo para quem anda nestes trabalhos há 34 anos…

O Projecto Cabeço Santo

O Projecto Cabeço Santo (PCS) foi criado em 2006 para promover o restauro ecológico com envolvimento da sociedade mais larga, no pressuposto de que esta colhe também os seus benefícios. Quando o foi, abrangia apenas áreas da Mata do Cabeço Santo, então pertencente à Celbi, uma empresa de celulose, e um terreno de 7 ha cuja aquisição foi então conseguida a favor da Associação Quercus, a organização que até 2019 foi o rosto institucional do projecto. O PCS nasceu das cinzas de um grande incêndio, o de 17 para 18 de Setembro de 2005, mas, como essa história já a escrevi, deixo apenas o link para a página onde está publicada, ainda que o texto original tenha sido remetido para o pdf identificado no final da página.

As áreas florestais de conservação da Quinta das Tílias estão integradas na área de intervenção do PCS, podendo acolher trabalhos promovidos pelas duas entidades. Desta forma, a Quinta concede uma gestão partilhada dessas áreas, tendo em conta a valia que elas representam para a comunidade mais larga. Como forma de envolvimento dessa comunidade mais larga, uma das propostas que se tem mantido mais consistente desde o início do projecto é a realização de jornadas de voluntariado ao Sábado, abertas a todos os que nelas queiram participar. Para mais informações sobre o projecto, visitar o sítio https://ecosanto.com