Desta vez não foi completa surpresa, mas ainda assim o resultado surpreendeu pela negativa: mais uma vez, uma equipa de operacionais ao serviço da E-Redes executou um trabalho de lamentáveis consequências, sem atingir nenhum objectivo razoável. O trabalho foi o corte cego e integral de toda a vegetação lenhosa sob a linha, não por razões de operacionalidade da linha, o que seria um objectivo razoável, mas para cumprimento de uma legislação medíocre há demasiado tempo em vigor, para a qual a protecção contra a propagação dos incêndios florestais obriga ao corte do coberto arbóreo, mesmo daquele que melhor protege contra essa propagação.
Já não é a primeira vez que tenho de escrever sobre este assunto. A primeira foi aqui. A segunda (pode ser consultada aqui) não chegou a público mas chegou ao ICNF, à E-Redes, ao Presidente da República, ao Primeiro Ministro e ao Ministro do Ambiente. A E-Redes respondeu que cumprisse eu as minhas obrigações. O ICNF veio cá, e até levantaram um auto… mas só por causa dos sobreiros. O Presidente da República agradeceu o contributo. O Primeiro Ministro e o Ministro do Ambiente nada disseram.
Já esperava, por isso, que a situação se repetisse, num troço da linha ainda intocado até agora. Um troço que atravessa zonas sensíveis, e por isso onde deveria haver mais cuidado. Contudo, os resultados mostram não apenas ausência de cuidado, mas obediência cega e até mesmo abuso. Eis as minhas observações:
1) Num atravessamento do ribeiro (pela linha) que, infelizmente, acontece segundo um ângulo pequeno em relação ao seu curso, a vegetação ribeirinha foi totalmente cortada numa extensão de algumas dezenas de metros, mesmo limitando-se essa vegetação praticamente à margem e sendo de pequeno porte.

2) Um pouco à frente um castanheiro isolado de copa bem redonda e distante dos fios situava-se a uns 4-5 metros de um poste. Do outro lado do poste estava um loureiro de porte arbustivo também bem longe dos fios. O loureiro foi totalmente cortado. O castanheiro foi desfigurado.

3) Um pouco à frente um grande carvalho a mais de 7 metros da projecção dos fios sobre o solo, já na encosta. Foi severamente desramado, mesmo os ramos que não se estendiam em direcção à linha. Neste caso parece-me que foi abuso.

4) Algumas dezenas de metros à frente havia uma mancha de carvalhos, castanheiros e ciprestes que foi dizimada. Aqui sim, poderia haver algumas árvores com as copas perto dos fios, mas nada que justificasse o corte raso.


5) Logo a seguir, novo atravessamento do ribeiro e um talude bastante inclinado entre o ribeiro e as terras agrícolas lá em cima. No talude, alguns carvalhos e castanheiros mais altos, mas sobretudo muitos loureiros com as copas bem distantes dos fios. Eu tenho 58 anos e desde criança que conheço aquela terra porque era de família. Sempre me lembro daquele talude com densa vegetação autóctone. A linha está lá há mais de 40 anos e o máximo que foi feito em todos esses anos foi o corte dos ramos das árvores que se aproximavam dos fios. Agora ficou como as imagens mostram, e, mais uma vez, a vegetação ribeirinha, grande ou pequena, foi totalmente obliterada, já para não falar na desestabilização das margens que acarretou o arrastamento de árvores caídas para a zona mais acessível, na margem sul do ribeiro. Particularmente aqui, no talude, lenha e ramadas ficaram depositadas, sendo difíceis de remover pois que teriam de sê-lo para cima, para a terra cultivada. Ou seja, ficamos com uma faixa de “gestão de combustíveis” repleta de combustíveis bem secos e prontos a arder. Num local onde nunca um incêndio sequer tocou.

Tudo isto aconteceu numa extensão da linha de apenas 250 metros, entre a Lavandeira e o Pedregal, em Belazaima do Chão, Águeda, Aveiro. Muito pouco para tanto dano.
Já o escrevi, mas volto a repeti-lo: o que realmente incomoda nisto é a inutilidade do realizado. Como “gestão de combustíveis”, estas intervenções são totalmente inúteis e mesmo contraproducentes. Em muitas extensões da linha ficam ramadas secas, e mesmo a lenha só é recuperada se for facilmente acessível. As árvores e arbustos cortados voltarão a rebentar, mas, sobretudo onde o arvoredo era menos denso, silvado e outra vegetação oportunista aparecerá logo na Primavera seguinte e terá tempo e luz suficiente para prosperar. A E-Redes vai fazer a gestão dessa vegetação várias vezes por ano para que não seja um perigo para a propagação dos incêndios?
Outra coisa que esta situação me parece mostrar é a debilidade da sociedade civil. Isto não é um assunto só de Belazaima. Deve acontecer por todo o país. Como é possível os movimentos da sociedade civil não terem a força e a influência suficiente para conduzir a uma alteração da legislação? Eu, para dizer a verdade, até já participei numa tentativa nesse sentido, por iniciativa da Associação Quercus. Mas, qual o resultado disso? Parece que, até ao momento, nenhum.
Porque, realmente, o que mais choca nestas intervenções é que elas não resultaram de actos estúpidos promovidos por gente ignorante. Elas são orquestradas a partir de cima, emanam da autoridade do próprio Estado, um Estado do qual esperaríamos bom senso, sensatez, fundamento, critério. Mas o que emana parecem mais tentativas apressadas de encontrar soluções simples para problemas complexos, mesmo que tais soluções causem danos maiores do que os problemas que pretendiam resolver, ao mesmo tempo que responsabilizam quem está abaixo, pessoas e entidades que se afanam em cumprir sem pensar, com receio de serem responsabilizadas se alguma coisa má acontecer. Claro que “alguma coisa má” continua a poder acontecer, até ainda “mais má” do que antes, mas aí essas pessoas e entidades podem ficar descansadas: não serão responsabilizadas.
Assim acontece que a E- Redes (e sei lá quem mais) se afana em fazer cumprir à risca o que vem de cima, e os operacionais no terreno, movidos por tal zelo e plenamente convencidos da justeza das determinações e da “culpa” dessas árvores e arbustos que são mandados cortar na propagação dos incêndios, o fazem sem pestanejar, e se são 7 metros o que têm de cortar para cada lado da linha, o melhor será cortar 8 ou 9, não vá, acontecendo alguma desgraça, alguém vir medir com igual zelo quantos metros é que foram cortados, e caso meçam menos de 7, ainda virem a responsabilizar as próprias equipas operacionais por essa desgraça.
Onde e quando é que já se viu esta cadeia de irreflectido sem-sentido, começando lá bem “em cima” e terminando diligentemente “cá em baixo”? E onde e quando é que já se viu, face a uma tal cadeia, a indiferença e o encolher de ombros de uma maioria que não vê aí a sua existência ameaçada? Algumas vezes, por certo, e com consequências bem funestas.
Podem ainda perguntar: justifica-se tanto alarido por apenas 14 m de largura ao longo de uma linha eléctrica? Nesta região, como em praticamente todo o norte e centro do país, mas muito particularmente nas áreas montanhosas, a biodiversidade e a paisagem ficaram reduzidas à mínima expressão, como consequência de uma exploração florestal agressiva e a expansão das espécies invasoras. Apenas fragmentos, às vezes árvores isoladas, quando muito pequenas manchas. Por isso, qualquer pequena intervenção que afecte estes restos acaba por se tornar uma enorme machadada. Esses “restos” são um pouco como relíquias, constituem referências de onde podemos partir para recuperar alguma coisa. Deviam ser tratados “com pinças”, mas o que se constata é o contrário. Apenas os sobreiros são mais acautelados, mas mesmo assim muitos ficaram desfigurados, mesmo aqueles com copas muito distantes dos fios. E porquê os sobreiros? Porque são ecológica e paisagisticamente importantes? São, sem dúvida mas não é por isso que gozam de alguma protecção, é porque são economicamente importantes. Porque, se fosse pela ecologia, muito mais espécies deveriam merecer protecção, a começar pelos seus “primos” carvalhos, que aqui até são (potencialmente) mais abundantes do que os sobreiros. Mas não, os carvalhos, todos os arbustos da flora autóctone, ainda que na sua maioria de pequeno porte, tudo cai sob a voragem de “limpezas” que para nada servem excepto deixar algumas consciências (falsamente) descansadas.

Meus caros, agora basta de escrita, creio que já foi suficiente, desta e das outras vezes. Se não serviu para nada, nada mais posso fazer senão voltar ao terreno e continuar a dar a minha contribuição para que as coisas melhorem, ainda que seja tão espantosamente mais fácil e rápido estragar do que melhorar. No local que suscitou o escrito citado (Valinho Turdo), esses trabalhos já começaram: as árvores cortadas foram removidas, infelizmente ainda numa altura em que o terreno estava encharcado, o que deixou sulcos profundos devido ao trânsito da maquinaria. Mas, entretanto, uma mini-escavadora deu um jeito, e preparou locais de plantação. Nesses locais serão plantados arbustos autóctones, plantas cujas copas ficarão sempre muito longe dos fios. Estarão a salvo de acções de “limpeza” como têm acontecido? Não estão, mas temos de ser optimistas: esta paranoia não deve durar para sempre.


Pulo Domingues, 5 de Março de 2023


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